Supernatural


Agora você quer que eu volte. São três da manhã e eu preciso terminar de ler esse livro, ou pelo menos mais uns três versos dele. Você podia ter dito tudo aquilo antes. Eu não sou sentimental a ponto de me derreter por palavras rabiscadas em papel de embrulho, muito menos por letras de músicas de filmes americanos. Manter a pose durona não é fácil. Depois dos trinta, pior. Se me der na telha, eu peço demissão e vou morar na praia. Sozinha. Quer dizer, levo o Luke junto por precaução. Pelo menos, ele não morde. E você às vezes me deixava mordida de ciúme. O que você não sabia é que eu sou forte e dou a volta por cima. Aliás, dou a volta no quarteirão para não encontrar aquela vizinha corpulenta que chama a sua atenção. Prefiro desviar obstáculos a me incomodar por pouco. O porteiro do condomínio me passou uma cantada no mês passado. Fiz de conta que não ouvi.  Mas a gente sempre ouve o que não deve para estimular a vaidade. Eu estava na TPM e o meu cabelo parecia o pior do mundo. Em determinadas épocas, hormônios femininos podem ser mais fortes do que um furacão. A cantada do porteiro rejuvenesceu a minha alma. E não senti vergonha por ter gostado. O tio Beto queria que eu comprasse cerveja no boteco da esquina porque você prometeu um churrasco no domingo. Quando ele souber que o namoro acabou, vai te ligar para tirar satisfação. Quem sabe você troca o número do telefone? Seria bom até para evitar que eu ligasse em algum momento inoportuno. Afinal, é lógico que você não vai ficar solteiro por muito tempo, porque, mesmo com os seus defeitos, o seu beijo é bom e o seu apartamento é grande. Ah, sim, você tem doutorado e mora sozinho desde os dezesseis anos. Uma pena que almoce todos os domingos com a sua mãe e jante com ela nas terças e nas quintas. Mas pode ser legal se a sua próxima namorada tiver dezoito anos e pensar que relacionamento é só cinema e pipoca. Se eu seria capaz de começar de novo? Com você, sinceramente, não. Mas começaria com o Carlos, meu psicólogo. Se ele não for gay, e se eu tomar coragem, vou convidar ele para sair. Instinto selvagem, talvez, para manter a sobrevivência da minha metade inconsequente. Se não der certo, pelo menos vai render uma boa conversa no divã. Faço jus à fortuna que pago no consultório. Amanhã ou depois, eu vou te ligar para dizer o que vai  embora e o que fica comigo. Essas suas caixas espalhadas no chão estão atrapalhando a decoração da sala. Se você quiser, eu mando por uma transportadora, porque daí a gente não se encontra e não precisa trocar aquela meia dúzia de palavras cerimoniosas, só por conveniência. Na verdade, o que a gente queria dizer um para o outro era "você é legal, mas não quero mais ficar junto só por ficar". E é isso, a gente se apaixona e sempre acha que vai ser para sempre essa história inventada de felizes para sempre. E eu até curto Cazuza, mas  muita invenção em matéria de amor não me atrai. Na real, todo mundo sabe que não é assim, mas insiste porque precisa fazer de conta que acredita em algo sério. E não dá para acreditar que é sério quando a gente tem que dividir cds e livros depois de discussões e desentendimentos que parecem roteiro de drama. Aliás, não precisa devolver o cd do Tim Maia que eu te dei no Natal passado. Eu fico com o do REM para cantar Supernatural Superserious a todo o volume. Lembra que você detestava quando eu ouvia REM? Diferenças. Faz parte do romance não ser igual ao outro. Pelo menos é o que dizem nas palestras sobre relacionamento. Por isso eu sempre detestei livros de autoajuda!  Resta então desejar boa sorte e dizer umas frases bonitas para pedir desculpa por mágoas ou sentimentos afins. E, se faltar alguma palavra, algum gesto, alguma saudade, um dia a gente corrige. Um dia a gente aprende. No fim das contas, a gente sempre aprende. Nem que seja a dizer adeus.