De flor

Amy Melious

Eu queria ter nascido uma flor. Antúrio, lírio, jasmim, orquídea. Assim, numa flor, não precisaria de palavras, decisões, discussões, rotas, rumos, caminhos. Bastava ser forma e beleza em perfume e cor. E só. De noite, fechada em mim. Ao dia, aberta pelo sol, em estações escolhidas para crescer delicada e forte no tempo inacabado das coisas bonitas do mundo. De flor em flor, eu redescobriria o vento, o tempo e as mãos cuidadosas daquele que me cuidasse. E a ele daria a beleza única dos frutos que, em sementes, trariam novas cores e sensações em pétalas e folhas feitas de toda a poesia que há no mundo.

Eu queria ser uma flor para você. Mas fui feita de puro romantismo em corpo de gente. E só posso dizer que o meu amor é como uma flor rara. E a melhor parte de mim.





[você é o amor da minha vida.]

.ponto




Tá certo, tudo certo. Você economiza palavras e eu, atos. Vem cá, dá para trocar o disco? Você se incomoda se eu trocar de roupa? Uma preta por outra prata? Prata da casa. Era assim que você me chamava há tempos atrás, quando eu ainda tinha os olhos grandes, atentos e curiosos. Podemos sair para jantar ou você vai dizer que está ocupado? Lembra qual é o restaurante? Aquele com as massas carbonara e quatro queijos. Mascarpone, Gorgonzola, Provolone, Pecorino. Você adora queijos até hoje. E eu sempre achei uma coisa mais ou menos. Eu queria conhecer Montpellier e você insistiu em Milão. E lembra quando você me conheceu? Eu era uma adolescente desajeitada, que gostava de música erudita e usava um óculos de armação colorida. Sonhava em fazer faculdade de filosofia e depois rodar o mundo de mochila nas costas. Cursei arquitetura na década de 80. Guardei a mochila e deixei que você me levasse a conhecer o mundo em grande estilo. Um tanto de Mies, Siza, Calatrava, Niemayer. E eu dava um jeito de colocar o Kant e o Nietzsche ali no meio de tudo. Eu lembro que me apaixonei por você no exato momento em que nos encontramos. Naquele bar da rua estreita. Você me ligou algumas várias vezes porque eu estava atrasada. – Um lance analógico, místico, mágico, foi o que você me disse. Eu respondi que adorava analogias, desde que fossem coloridas. Você riu e me deu a mão. Depois de alguns meses, casamos. Sem festa nem bolo nem vestido de noiva nem igreja nem convites nem padrinhos nem valsa nem pacotes de presente nem terno nem gravata nem lua-de-mel nem nada dessas coisas que achávamos desnecessárias para completar o amor. Nós acreditávamos no amor com a ingenuidade de uma criança que acredita em fadas. E dava certo. Mas você desistiu, de uma hora para outra, ou de tempos que eu não percebi de quantos tempos foram, de acreditar em coisas bonitas. Você cresceu e perdeu tudo o que era doce e puro. Um adulto com palavras adultas. Uma crônica sem graça. Até nossos filhos são mais poetas. Tecem versos de Barthes nos desenhos de Gockel.

Não sei se você está entendendo isso tudo. Espero que esteja. Era para ser um bilhete de poucas linhas e nada de muito enredo. Mas como você, de uns tempos para cá, costuma dizer: eu adoro fazer dissertações de tudo, em tom clichê e desmedido. Por isso, resolvi escrever mais do que você gostaria de ler no seu mundo fechado e em preto e branco. Encontrei a mochila antiga e coloquei uns pares de roupa dentro. Vou conhecer Montpellier e volto – se voltar – em algum tempo. Paguei as contas que estavam na escrivaninha e cancelei o congresso do final de semana. Prefiro o aroma dos vinhos franceses a horas de discurso sobre forma e função na arquitetura de vanguarda.

Nunca fui boa em despedidas e agora não vai ser diferente. Não tenho frase elaborada nem fecho bonito para encerrar o que precisa ser dito. Você tem pouco mais de 40 anos, um bom apartamento, o carro do ano, uma casa no campo e, de quebra, toda a herança do seu pai. Não contesto gostos ou valores. Mas acho que você entendeu tudo. Less is more. Passou. Boa sorte.

Paralelas

Hampton Hall

Eu não tenho medo do escuro. Posso dar dois passos, ou cem, de olhos vendados. Reconheço o perigo em outras coisas que não a ausência de luz. Não gosto de quem não enlaça mãos, de quem não toca, não afaga, não dilui o olhar no outro para morrer de amor. Tenho medo da covardia disfarçada de beleza em homens de palavras decoradas. Palavras soltas e pouco tato. Detesto. A poesia não mora nas letras, nem na forma. Vive da alma. O desconhecido é apenas um tempo onde ninguém foi. E se for tempo paralelo, para mim, está valendo.

O que importa de verdade

Sharon Green

Un faro quieto nada sería
guía, mientras no deje de girar
no es la luz lo que importa en verdad
son los 12 segundos de oscuridad.
Jorge Drexler



Faço lento o meu piscar de olhos. Eu movimento os cílios devagar, como quem acalenta ondas num mar de sonhos. Eu abro e fecho meus olhos com calma para dar tempo de guardar na lembrança as cores do tempo e a dança do vento. Eu caminho rápido e pisco os olhos devagar. E está tudo bem assim.