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Tá certo, tudo certo. Você economiza palavras e eu, atos. Vem cá, dá para trocar o disco? Você se incomoda se eu trocar de roupa? Uma preta por outra prata? Prata da casa. Era assim que você me chamava há tempos atrás, quando eu ainda tinha os olhos grandes, atentos e curiosos. Podemos sair para jantar ou você vai dizer que está ocupado? Lembra qual é o restaurante? Aquele com as massas carbonara e quatro queijos. Mascarpone, Gorgonzola, Provolone, Pecorino. Você adora queijos até hoje. E eu sempre achei uma coisa mais ou menos. Eu queria conhecer Montpellier e você insistiu em Milão. E lembra quando você me conheceu? Eu era uma adolescente desajeitada, que gostava de música erudita e usava um óculos de armação colorida. Sonhava em fazer faculdade de filosofia e depois rodar o mundo de mochila nas costas. Cursei arquitetura na década de 80. Guardei a mochila e deixei que você me levasse a conhecer o mundo em grande estilo. Um tanto de Mies, Siza, Calatrava, Niemayer. E eu dava um jeito de colocar o Kant e o Nietzsche ali no meio de tudo. Eu lembro que me apaixonei por você no exato momento em que nos encontramos. Naquele bar da rua estreita. Você me ligou algumas várias vezes porque eu estava atrasada. – Um lance analógico, místico, mágico, foi o que você me disse. Eu respondi que adorava analogias, desde que fossem coloridas. Você riu e me deu a mão. Depois de alguns meses, casamos. Sem festa nem bolo nem vestido de noiva nem igreja nem convites nem padrinhos nem valsa nem pacotes de presente nem terno nem gravata nem lua-de-mel nem nada dessas coisas que achávamos desnecessárias para completar o amor. Nós acreditávamos no amor com a ingenuidade de uma criança que acredita em fadas. E dava certo. Mas você desistiu, de uma hora para outra, ou de tempos que eu não percebi de quantos tempos foram, de acreditar em coisas bonitas. Você cresceu e perdeu tudo o que era doce e puro. Um adulto com palavras adultas. Uma crônica sem graça. Até nossos filhos são mais poetas. Tecem versos de Barthes nos desenhos de Gockel.

Não sei se você está entendendo isso tudo. Espero que esteja. Era para ser um bilhete de poucas linhas e nada de muito enredo. Mas como você, de uns tempos para cá, costuma dizer: eu adoro fazer dissertações de tudo, em tom clichê e desmedido. Por isso, resolvi escrever mais do que você gostaria de ler no seu mundo fechado e em preto e branco. Encontrei a mochila antiga e coloquei uns pares de roupa dentro. Vou conhecer Montpellier e volto – se voltar – em algum tempo. Paguei as contas que estavam na escrivaninha e cancelei o congresso do final de semana. Prefiro o aroma dos vinhos franceses a horas de discurso sobre forma e função na arquitetura de vanguarda.

Nunca fui boa em despedidas e agora não vai ser diferente. Não tenho frase elaborada nem fecho bonito para encerrar o que precisa ser dito. Você tem pouco mais de 40 anos, um bom apartamento, o carro do ano, uma casa no campo e, de quebra, toda a herança do seu pai. Não contesto gostos ou valores. Mas acho que você entendeu tudo. Less is more. Passou. Boa sorte.

21 comentários:

  1. A D O R E I!!! Aliás essa tua forma de fazer poesia, vestindo outros (as) personagens a ponto de deixar os leitores os imaginando tal e qual, acredito ser a verdadeira mágica da escrita. Parabéns,Mágica!
    Bjo grande,
    Dana (Cherry)

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  2. Belo, texto, Felinea!
    Das adeus é fácil, é só balançar a mão de um lado pro outro, com a palma virada pra pessoa que você está tentando afugentar.
    bjs

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  3. Dana, cherry, teus comentários são sempre um encanto. bonitos como a tua alma :))

    há várias maneiras de dar adeus ao que não nos sustenta mais, Rafael. mas acredito que a mais verdadeira é aquela que se esgota nas possibilidades de cuidar do amor. gosto muito das palavras do Saramago, quando diz que é preciso não desistir e recomeçar sempre que necessário. obrigada pela visita! :)

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  4. Belas palavras minha querida. Não canso de repetir.
    E sabes que é de todo coração.

    Um abraço bem apertado linda da minha vida

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  5. e ser toda coração é o que vale entre tanta razão.

    um beijo em ti, Iza!

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  6. leio Rilke invertido, Jester.

    miadinhos :)

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  7. Estou aqui para fazer-lhe uma proposta, que eu considero interessante.Também sou TOP 100 e estou concorrendo na categoria "VARIEDADES" e estou na campanha "UM VOTO POR UM VOTO".O legal disso tudo é essa interação,eu conheço seu blog e vc, o meu.
    Já votei no seu e sei que também que receberei seu voto.
    Estou te seguindo e se quiseres me seguir, ficarei honrada.
    Obrigada

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  8. Quem ama acaba se submetendo a muita porcaria e isso abre a retaguarda e enfraquece. Esvai-se em sangue.
    Há muita dificuldade em estancar tamanha hemorragia.
    Se a gente tivesse um botão - que nem a moça do post - para poder sair na hora certa...
    Gata, tu és chique.
    Beijão procê do caipirão de cá.

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  9. a moça do post até pode ser. já eu...

    ...hemorragia total!

    beijão Ricardo!

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  10. Posso ver isso. Fica um contra-ponto legal. Parabéns pela energia.

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  11. Ha pessoas que crescem apenas por fora.

    Quando crescemos por dentro,não nos adaptamos mais a apenas ter...é preciso SER na plenitude da palavra.

    Tive tgb que romper ......para SER

    LINDO DEMAIS

    beijo
    Denise

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  12. Apesar da bela verborragia da senhora que se despede. Todavia ela tá certa, tudo certo ou não praquemama! Vou economizar nas palavras. Adeus, p/ mim, também foi feito pra se dizer:
    Bye bye, so long, farewell... Adios, arrivederte, sayonara, hasta la vista, au revoir... É só!!! Pelo menos deveria ser assim.
    bjo
    Fui

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  13. obrigada, Jester. já és de presença CATiva aqui no blog ;))

    sim, Denise. o crescer da alma é que é bonito! :)

    saber se está certo ou não. bah [!], daí complica, Eduardo. o negócio é fazer o que nos faz sentir bem. desde que não se prejudique ou magoe o outro. grata pela visita :)

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  14. Olá Felinea!

    Parabéns pelo Blogue!
    Muito bom mesmo.

    Gostei muito e já votei no TopBlog.
    Estou concorrendo também com o www.poesiaemblog.blogspot.com, e aguardo sua visita e o seu voto.

    Grande Abraço!

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  15. siza, niemeyer, calatrava, mies... onde aprendeste tanto sobre arquitetura?

    lindo texto para ler depois de uma viagem de mochilas cansadas...

    suerte :)

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  16. em tempo... não te deixe enganar algumas vezes less is bore... outras vezes é simplesmente less...

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  17. obrigada pela força, Robson! teu blog também está muito bacana :)

    "... tudo o que pode ser imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais inesperado dos sonhos é um quebra-cabeça que esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo."

    talvez tenha aprendido quando desisti de querer ter explicações para tudo e passei apenas a sentir. todas as coisas bonitas que eu descobri vou guardar para sempre. e que bom que a arquitetura ajudou :))

    obrigada pela visita e bom retorno [não aposente as mochilas!!].

    em tempo: a citação é do Ítalo Calvino, em "As Cidades Invisíves".

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  18. injustamente atribuem às crianças essa mania de querer explicações para tudo... algumas coisas simplesmente são...

    pode deixar que as mochilas cansam, mas nunca se aposentam...

    Cidades Invisíveis é um belo livro, Irene era uma das minhas favoritas... a cidade "sem dentro"... a cidade que olha sempre para fora...

    Em tempo... guardar todas as coisas boas e bonitas que vivemos é como ter um museu particular que se pode visitar sempre que algum ataque de daltonismo mude a cor do céu...

    Fica bem.

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  19. o Drummond disse que "as coisas findas muito mais que lindas, essas ficarão."

    lembranças de coisas boas são como um abraço que nos tira do chão. inesquecíveis :)

    em tempo: Irene está com a pontinha da folha dobrada. acho que também gostei.

    agora eu é que vou levar as mochilas para dar uma voltinha :))

    fica bem também.

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  20. hmmm... talvez tu tenhas comprado o livro já com o cantinho de folha dobrado...;)

    só volta quando as mochilas não aguentarem mais...

    te cuida.
    fica bem.

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movimentam o mundo desde
sempre, mas nem todos sabem.