nevermore


Lara Jade Coton



Já paguei as minhas contas em todos os planos. Não devo nada a ninguém. Me interprete do jeito que for mais conveniente.

na porta de casa


Vanessa Ho

não reclame da minha bossa, do meu jeito, e do meu des-com-
passo

atrasado.

vou do rock ao jazz e não me amole com conversas do passado. vá embora se o que falta é outra música. eu me viro muito bem sozinha. não nasci para poesia barata e fofoca em porta de bar. já sei que sou diferente. e é desse jeito que eu gosto.

[au revoir]

Al lado del camino

"si alguna vez me cruzas por la calle
regálame tu beso y no te aflijas
si ves que estoy pensando en otra cosa
no es nada malo, es que pasó una brisa
la brisa de la muerte enamorada
que ronda como un ángel asesino
mas no te asustes siempre se me pasa
es solo la intuición de mi destino."

Fito Paez


Steven Mitchell

transcrição


Amy Melious

é de lua em flor o meu amor por ti de papel passado a limpo em vidas unidas por coisas bonitas enlaces de mãos e troca de olhares num postal ou em letra escarlate pintada noir em cubos cúmulos nimbos de cores invertidas círculos viciantes de beijos apaixonados e sussurros em madrugadas feitas de planos para fugas combinadas nas manhãs de domingo quando a gente brincava de ser flor e bicho e entregava os pontos deitados na grama ou sob a chuva de setembro lembra dos nossos doces novembros primaveras verões e estações até de outros planetas quando você contou todos os anéis de Saturno e eu disse que preferia Urano só para mostrar desafio - o meu jeito lógico prático cartesiano -  mas você sempre preferiu a literatura e eu entendo que a minha física não seja lá essas coisas mas importa agora a nossa química que funciona e você nem precisa da tabela periódica para saber que eu sou de fases relativas e sagradas então não saia de perto venha mais perto chega mais perto de mim e não vá embora como quem saiu da banca de jornal depois de comprar um cigarro pode voltar aqui me encher de beijos me convidar para a farra tomar um porre e dormir junto sem precisar explicar nada para ninguém vem que a nossa história começou agora deixa tudo lá fora esquece a cara amarrada e o que foi dito no passado imperfeito dos desencontros não há gostar sem trégua sem um pingo de mágoa que acaba quando a alma se entrega e recebe o que precisa para viver.

Paradouro





Foi com os olhos pequenos que ela viu um mundo gigante. E deixou para trás todas as coisas menos importantes.

Sobre as escolhas

A projeção do nosso amor maior recai sobre um único ser, escolhido entre outros tantos, e nos agrada saber que, num universo de opções, elegemos uma parte importante da nossa vida para dividir com o outro. Reservamos o que temos de mais secreto para aquele com quem, cuidadosamente, queremos compartilhar espaços, tempos, vivências.


Gustav Klimt

Não há filosofia, interpretação, ou ciência que explique os motivos do contrato íntimo que firmamos com aquele que escolhemos para amar mais do que a qualquer outra pessoa. Selecionamos instintivamente a quem nos agrada para dar continuidade à vida. E isso não precisa de detalhes ou pormenores. Apenas acontece.

Azul


       Laurent Pinsard

Há no silêncio alguma coisa de azul. Violeta, cobalto, marinho. Dos pequenos fragmentos de um tempo são feitas as pausas da vida. Reticências, iminências, descobertas. Turquesa, anil, da Prússia, ferrete, pombinho. Não sei se é o azul do céu, do mar, ou do olhar. Talvez seja apenas a letra de um blues.  Tocado assim, devagarinho. Azular o amor num encontro de almas. E é preciso mais?

esperas


quem sabe um dia você desiste dessa maneira tola de tentar resolver as coisas em pedaços e me tem inteira.

[quem sabe um dia]




Diário


Segunda-feira
Não sei como começar um diário. Sou impaciente com regras. Portanto, aviso que a empreitada pode não durar dois dias. Acontece que cansei da poesia de ser sozinha. Preciso de um cúmplice e não tenho vocação para amante. Vou escrever em poucas linhas e tentar entender o que vem por aí. Se não der certo, depois eu dou um jeito. Escrever solto. Só para ver no que dá.

Terça-feira
Talvez hoje chova. Aquela garoa fina que me incomoda quando molha os meus cabelos. Não gosto de dias de chuva. Não gosto dos meus cabelos. E cheguei na idade em que não gosto de me olhar no espelho. Vou passar por ele como Alice. Tarde, mas me encontrei com aquilo que alguns chamam de razão, outros de juízo, e outros, os livres – ou loucos [e, portanto, livres] –, de perda de tempo. Pedi duas doses de whisky no boteco da esquina. Não dormi em casa.

Quarta-feira
Passamos a noite juntos. Desta vez, em lua crescente. Acordei feliz. Um banho a dois, café na cama e flores. Preciso, mesmo, escrever isso aqui? Pieguice e clichês românticos estão fora de moda. Aliás, até a capa deste diário está fora de moda. P.S.: Talvez eu também esteja.

Quinta-feira
Passou da meia-noite. Ele chegou tarde. Pedido de desculpas com uma caixa de bombom. Perdi o tesão por qualquer coisa ou por qualquer ato que não o do silêncio. Já é quinta e não virei a página do diário. Escrevi nas mesmas linhas de ontem. Quero trocar o disco. Hoje à noite, é Nina Simone pelo Cartola só para ver se dá samba. Depois eu me corrijo. Leio Ana Cristina César. Viciante. Preciso de um beijo que tenha um blue. Açúcar branco e café preto.

Sexta-feira
Ainda chove. Noite. Lua cheia. Eu, crescente. Sexo, carinho e sono. Pedi ao relógio para atrasar o amanhecer. Até me parece razoável ter mais de trinta anos e escrever diários.

Sábado
Comentários sobre ela me desagradam. Já disse que me desagradam. Depois de tudo dito, ele me estendeu a mão. Não consegui acompanhar. Acho que a minha respiração parou por segundos. Acompanhei o sono dele por um tempo. Meus olhos pesaram. Não sei se me encolhi de frio ou de medo. Levantei algumas vezes e circulei pela sala. Olhei as revistas e tentei ler Proust sem sucesso. Ainda bem que existe o mundo virtual. Descobri o Twitter e uns mapas legais no site de Geologia da faculdade. Deitei por volta das seis da manhã. Ele dorme sempre na mesma posição. Acho bonitinho e estranho. Eu sou um Tsunami com os lençóis. Tarde de sábado e eu estava com o sono atrasado. Experimentei mudar a cor do esmalte. Disseram que vermelho-cereja traz sorte e fortuna. Cheguei em casa e encontrei um bilhete em cima da mesa. Ele nem ao menos assinou. Típico comportamento masculino. Acho que a minha intuição já me alertava: prazo de validade para relacionamentos encantadores demais, promessas demais, coisas demais: algumas semanas. Se, porém, tratado com vinho tinto e boa cama, o prazo alonga por alguns dias. Estou solteira outra vez. Mas com as unhas feitas e pintadas de vermelho-cereja. Ainda bem que é primavera. Preciso de um homem que me leia inteira.

Domingo
Desisti de diários. E talvez eu deva mesmo, como falou a minha mãe, morar em Londres. Quero pintar as paredes de casa de verde. Que seja, verde. Dane-se quem não gostar. A parede é minha e a cor da minha vida eu escolho. Comprei um cachorro e ganhei um cupom de desconto no trânsito. A loja até que é bacana. Vou comprar vestidos novos. Troquei a ordem dos discos e rasguei todas as cartas antigas que recebi dele no inverno passado. Voltei a sorrir mesmo com problemas para resolver. Sem diários e pesquisando pacotes de viagem. Vou deixar os bons ventos me levarem. E seja lá o que Londres quiser.

Analógica

Liliana Sanches

Ana, se precisar de verdades, fala. Todas. Sem metades ou invenções metafísicas. Podem ser frases em linhas tortas. Mas exercita a língua, Ana, em palavras certas, no momento em que entender correto. Pouco importa o antes. Lembra que do agora surge o teu reclame, o teu presente, a tua vontade. Se quiser chorar, Ana, fica só com a parte do que precisa ser dito. Ouvido. Sentido. Prova, sem culpa, o dom da narrativa breve e larga de significado. Usa a razão com bom senso. Faz da intuição teu guia. E segue sozinha os teus caminhos. Eu preciso partir.

genealogia

Darlyne A. Murawski

Minha mãe não morreu. E ainda assim eu não digo a ela o tanto de amor que há aqui. Aliás, digo. Mas digo pouco. Ela merece mais. As mães nunca erram. E a minha é um punhado de acertos. Um punhado bem grande. Reconhece a minha voz e as minhas dúvidas. Mães acalentam, exageram, protegem. São aqueles anjos que podem ser vistos de perto e que têm abraços em lugar de asas. Anjos terrenos. Um sem-fim de ternura.

Meu pai tem quase oitenta anos. Eu tenho pouco mais de trinta. E faço de conta que sei mais do que ele em tudo. Mentira! Meu pai tem de sobra o que eu ainda sequer cheguei perto: experiência.

Os filhos fingem que acertam. Os filhos erram. E insistem em acreditar que os pais são eternos. Não são. Eles partem no dia em que você menos imagina. E deixam as roupas, os livros, e as lembranças de quando, em criança, um domingo era uma festa, um sorriso era um presente, ganhar um doce era a felicidade. Sem precisar de mais nada. Bastava o carinho do colo, a segurança do sono velado. Bastava.

Um dia, quiçá, vamos aprender a dar aos pais o que eles nos ofertaram sem condição. Um dia talvez percamos a vergonha, a cara fechada quando recebemos um conselho, e a timidez para falar eu te amo. Tomara que um dia os filhos sejam pais em tempo de ainda agraciarem com coisas doces os sentidos de quem lhes deu a vida. Tomara.

em linha

Alain Thomas


desculpa preciso falar algumas coisas que são apenas detalhes momentos passatempos ou brincadeiras sérias de adultos que viram criança quando amam um ao outro sem farsas disfarce mas acontece que você vê e finge que me olha de um jeito que eu não sei de onde vem tanta coisa misturada assim sem saber nada e que me invade com tudo no mundo que é nosso e que às vezes se desfaz em pequenos pedaços de outras coisas de várias pessoas todas esquecidas que deveriam estar no seu lugar de espaço tempo outro modo de enxergar aquilo que precisa ser visto é o que não vemos e esquecemos de acompanhar as coisas bonitas tão lindas e raras de nós dois.

Morangos selvagens

David Cintract

Comi o primeiro morango com quarenta e cinco anos de idade. Sou alérgico a morangos. E, por ser alérgico, deixei de provar essa e outras pequenas delícias que existem no mundo. Depois das explicações médicas, busquei resposta na religião. Segundo o Espiritismo, minha alergia existe para que eu aceite algo que, em outras vidas, rejeitei. Para o Cristianismo, ser alérgico não é pecado e eu vou para o céu se evitar os morangos. No Judaísmo, eu não poderia misturar morango com algum outro alimento da comida kasher. E, para os neo-pagãos, comer morangos só com a permissão da natureza. Não acredito em espíritos, conheço os dez mandamentos, já li todos os preceitos judaicos e acredito em bruxas só na forma de mariposas. Sou ateu e professor de Filosofia. Não matei Deus, como fez Nietzsche, mas também não vivo em luta diária com o lado profano da vida. Mesmo alérgico, provo morangos se os motivos forem convincentes.

Certa vez, Lúcia, uma namorada, me presenteou com uma caixa de bombons recheados de morango. No cartão, o escrito: “Você tem gosto de morango selvagem.” Não contei a ela que nunca havia provado morangos, muito menos que não fazia sequer ideia do sabor de um morango selvagem. Ela certamente conhecia o gosto. Menti que adorava morangos. Mulheres não suportam ser contrariadas, a não ser para iniciar e prolongar uma discussão. Deveriam vir ao mundo com manual Proustiano. Naquela tarde eu acabara de ler um livro do Michel Onfrey, e dei a Lúcia uma aula sobre morangos e sobre a culinária de Carême. Em troca, recebi uma noite de amor que eu defino como etílica e de vanguarda.

Lembro que era segunda-feira. Desci as escadas e, olhando contra a claridade empoeirada da vidraça da porta de entrada do prédio, visualizei a banca de morangos do outro lado da rua. “Três por dez”, dizia no papelão rabiscado com lápis preto. Perguntei ao vendedor sobre morangos selvagens. Ele disse que deveriam ser silvestres, porque morango selvagem ele nunca tinha visto. “Selvagens!”, insisti. “Silvestres”, ele retrucou. Desisti do vendedor. Fui à caça dos meus morangos no mercado público. Estava decidido a provar do meu próprio gosto. Cruzava as ruas e praças da cidade tentando imaginar o sabor daquilo que se intitulava morango selvagem e que agradava tanto ao paladar de Lúcia. E uma pena que não agradasse também ao gosto daquela ruiva estonteante da faculdade. No caso dela, eu deveria ser tão atraente como uma laranja em meio a mirtilos e uvas selecionadas. C´est la vie.

Mas agora era diferente. Eu tinha gosto de morango selvagem!

Sorte que era final de mês. E que no mercado público havia condições de passear tranquilamente, sem aqueles atropelos de carrinhos e de velhinhas aborrecidas fazendo compras aos sábados pela manhã. Caminhei por ali cerca de meia hora. Lá estava: “Três por cinco.” Eis os morangos selvagens! Vermelhos, suculentos, adoráveis. Pedi uma caixa. E lucrei em relação ao que pagaria pelas frutas pálidas da banca em frente ao meu prédio. Recebi o embrulho e tomei o rumo de volta. Satisfeito com a descoberta dos morangos, faltava agora a prova. Não conseguiria esperar o retorno para casa. Sentei no banco da sorveteria e coloquei a sacola no colo. Espiei. Cerca de uns quinze frutos rechonchudos cor de rubi aguardavam a satisfação da minha gula. Desembrulhei a caixa e senti aroma de Floresta Negra, com cerejeiras por todos os lados. Cores, formas, sabores. Cheiro de terra molhada depois da chuva. E calor ameno de sol de amanhecer. Não sei o motivo de morangos me lembrarem cerejas. Mas acontece até hoje.

Pensei por alguns instantes na alergia, na possibilidade de algum choque anafilático, convulsão, morte. Mas a curiosidade pelo sabor do morango selvagem foi maior e abocanhei, delicadamente, o primeiro. A carne da fruta macia me tocou os lábios, os dentes, e a língua como se fosse uma nuvem que toca o mar. Suave. Exercitei as papilas lentamente, até engolir o líquido doce que, misturado com a saliva, escorreu pela garganta com sabor de néctar ou de qualquer coisa doce e saborosa.

Devo a Lúcia uma das minhas experiências mais sublimes vivenciadas até hoje. Descobri que sou alérgico apenas a morangos cultivados com agrotóxico. Aos selvagens, que são naturais, sou imune. Assim como descobri que sou imune a inseguranças bobas e a mentiras fúteis. Comecei a fazer coisas que havia abandonado. Visitei meu pai. Fiz novos amigos. Troquei de casa. Recomecei o mestrado. Voltei a frequentar a livraria da esquina. Tirei o açúcar do café. Parei de fumar. Doei as roupas que não uso mais. Acenei para o vizinho. Tomei banho de mar à noite. E decidi começar a viver como se ninguém estivesse olhando. Até agora tem dado certo. E, sem medo de morrer, estou mais vivo do que nunca.

Saturno em transe




frenesi:
a tua boca na minha
mão, pernas, corpo, saliva
da minha língua
no teu sêmen

e Saturno retorna

em transe
em transas, constelações intermináveis
de gozos
únicos, úmidos
cheios de signos, sexos,
samba

e Saturno
sempre retorna

nas minhas fugas
nas tuas dúvidas

no nosso

jeito

Fora da lista


Oi, tudo bem?


Vem sempre aqui? [Ótimo.]


Nasci menina mimada e, anos depois, aprendi a trocar lâmpada, amores e os azulejos de casa. Há quem, como você, goste de coisas feitas sob encomenda. Eu prefiro ficar sozinha. Me dou bem com uma ducha quente e um cinema por perto. Cresci entre coisas doces. Virei mulher com lábios, e vulva, em mel. Bati com a cara no chão. Aos trancos, levantei. Perdi horários, uns trocados e algumas festas. Não me arrependo. Chorei aos quatro ventos e entre quatro paredes. Gozei. Jogada na grama e na cama. Me apaixonei por fulano, beltrano e outros mais. Errei. Acertei. Errei feio. E de novo. Me atirei no divã por necessidade e, por pouco, não pulei do oitavo andar. Só para variar. Casei na Igreja. De véu e grinalda. Cinta-liga e meia 7/8. Hoje dispenso cerimônias e beijo meu homem de cinco em cinco minutos. Tiro a roupa na cozinha, estudo na sala e durmo no banheiro. De porre. Curto Cazuza a todo volume, mas tive que aprender música erudita nas aulas de piano. Fugi de casa. Dei voltas no quarteirão. Tenho grana para uma volta ao mundo. Faço poemas, crio dilemas e encontro soluções. Tenho fome de tudo o que tem cor, movimento, rebeldia. Adoro arte moderna, mas também sei ser retrô. Não devo nada a ninguém. Pago minhas contas, gosto de gatos e detesto cães policiais. E não gosto de você. Aliás, nem desgosto. O seu tipo é bacana mas não faz o meu. Gata que mia e não arranha nunca foi o meu forte. Usei vestidinho cor de rosa nos quinze anos. Mas os trinta me salvaram à la absinto. E sinto muito se você não gosta do meu jeito. Ou se gosta tanto que não consegue deixar de me seguir. Já tentou a literatura russa? Tchekhov, Dostoievski, Pasternak? Ou vá fazer pesquisa de campo. Contar pirilampos. E me dê um tempo! Não tenho paciência para olhos bonitos e pouco assunto. Pelo menos, por enquanto.

Cromoterapia

Neeta Madahar


Eu tenho, entre todas as cores, as tuas. Belezas que me afagam a alma. Pérolas e poemas que eu guardo em mim. Detalhes que esperam tempos que vêm. E passam. Deslindes apenas. Coisas feitas em pequenos pedaços dos meus dias, tecidas no encontro suave dos teus lábios nos meus. Como o vento que beija o mar calmo e colore de anil a imensidão do céu. Como se pudesse passar a minha vida na tua. Com compassos de sons e poesia pintados em sorriso de criança. Em danças astrais de cometas cintilantes. Daqueles que eu te dei de presente. Dos doze signos, dos cinco sentidos, dos sete dias da semana. No sentido horário do amor maior. Aroma de anis. Os teus olhos nos meus e as mãos entrelaçadas. Até o fim.

De flor

Amy Melious

Eu queria ter nascido uma flor. Antúrio, lírio, jasmim, orquídea. Assim, numa flor, não precisaria de palavras, decisões, discussões, rotas, rumos, caminhos. Bastava ser forma e beleza em perfume e cor. E só. De noite, fechada em mim. Ao dia, aberta pelo sol, em estações escolhidas para crescer delicada e forte no tempo inacabado das coisas bonitas do mundo. De flor em flor, eu redescobriria o vento, o tempo e as mãos cuidadosas daquele que me cuidasse. E a ele daria a beleza única dos frutos que, em sementes, trariam novas cores e sensações em pétalas e folhas feitas de toda a poesia que há no mundo.

Eu queria ser uma flor para você. Mas fui feita de puro romantismo em corpo de gente. E só posso dizer que o meu amor é como uma flor rara. E a melhor parte de mim.





[você é o amor da minha vida.]

.ponto




Tá certo, tudo certo. Você economiza palavras e eu, atos. Vem cá, dá para trocar o disco? Você se incomoda se eu trocar de roupa? Uma preta por outra prata? Prata da casa. Era assim que você me chamava há tempos atrás, quando eu ainda tinha os olhos grandes, atentos e curiosos. Podemos sair para jantar ou você vai dizer que está ocupado? Lembra qual é o restaurante? Aquele com as massas carbonara e quatro queijos. Mascarpone, Gorgonzola, Provolone, Pecorino. Você adora queijos até hoje. E eu sempre achei uma coisa mais ou menos. Eu queria conhecer Montpellier e você insistiu em Milão. E lembra quando você me conheceu? Eu era uma adolescente desajeitada, que gostava de música erudita e usava um óculos de armação colorida. Sonhava em fazer faculdade de filosofia e depois rodar o mundo de mochila nas costas. Cursei arquitetura na década de 80. Guardei a mochila e deixei que você me levasse a conhecer o mundo em grande estilo. Um tanto de Mies, Siza, Calatrava, Niemayer. E eu dava um jeito de colocar o Kant e o Nietzsche ali no meio de tudo. Eu lembro que me apaixonei por você no exato momento em que nos encontramos. Naquele bar da rua estreita. Você me ligou algumas várias vezes porque eu estava atrasada. – Um lance analógico, místico, mágico, foi o que você me disse. Eu respondi que adorava analogias, desde que fossem coloridas. Você riu e me deu a mão. Depois de alguns meses, casamos. Sem festa nem bolo nem vestido de noiva nem igreja nem convites nem padrinhos nem valsa nem pacotes de presente nem terno nem gravata nem lua-de-mel nem nada dessas coisas que achávamos desnecessárias para completar o amor. Nós acreditávamos no amor com a ingenuidade de uma criança que acredita em fadas. E dava certo. Mas você desistiu, de uma hora para outra, ou de tempos que eu não percebi de quantos tempos foram, de acreditar em coisas bonitas. Você cresceu e perdeu tudo o que era doce e puro. Um adulto com palavras adultas. Uma crônica sem graça. Até nossos filhos são mais poetas. Tecem versos de Barthes nos desenhos de Gockel.

Não sei se você está entendendo isso tudo. Espero que esteja. Era para ser um bilhete de poucas linhas e nada de muito enredo. Mas como você, de uns tempos para cá, costuma dizer: eu adoro fazer dissertações de tudo, em tom clichê e desmedido. Por isso, resolvi escrever mais do que você gostaria de ler no seu mundo fechado e em preto e branco. Encontrei a mochila antiga e coloquei uns pares de roupa dentro. Vou conhecer Montpellier e volto – se voltar – em algum tempo. Paguei as contas que estavam na escrivaninha e cancelei o congresso do final de semana. Prefiro o aroma dos vinhos franceses a horas de discurso sobre forma e função na arquitetura de vanguarda.

Nunca fui boa em despedidas e agora não vai ser diferente. Não tenho frase elaborada nem fecho bonito para encerrar o que precisa ser dito. Você tem pouco mais de 40 anos, um bom apartamento, o carro do ano, uma casa no campo e, de quebra, toda a herança do seu pai. Não contesto gostos ou valores. Mas acho que você entendeu tudo. Less is more. Passou. Boa sorte.

Paralelas

Hampton Hall

Eu não tenho medo do escuro. Posso dar dois passos, ou cem, de olhos vendados. Reconheço o perigo em outras coisas que não a ausência de luz. Não gosto de quem não enlaça mãos, de quem não toca, não afaga, não dilui o olhar no outro para morrer de amor. Tenho medo da covardia disfarçada de beleza em homens de palavras decoradas. Palavras soltas e pouco tato. Detesto. A poesia não mora nas letras, nem na forma. Vive da alma. O desconhecido é apenas um tempo onde ninguém foi. E se for tempo paralelo, para mim, está valendo.

O que importa de verdade

Sharon Green

Un faro quieto nada sería
guía, mientras no deje de girar
no es la luz lo que importa en verdad
son los 12 segundos de oscuridad.
Jorge Drexler



Faço lento o meu piscar de olhos. Eu movimento os cílios devagar, como quem acalenta ondas num mar de sonhos. Eu abro e fecho meus olhos com calma para dar tempo de guardar na lembrança as cores do tempo e a dança do vento. Eu caminho rápido e pisco os olhos devagar. E está tudo bem assim.

Menina programada

Vanessa Ho

Pedi uma torta e um café. Sobraram algumas coisas.

Sei o dia do ano em que nasci. E o horário. Mas tenho dúvida se fui gerada ou se fui colhida de uma árvore de maçãs.

Se me olhassem de dentro diriam: "uma menina tímida, bonita, e que precisa de amor." Mas me olham de fora, e, de fora, riem, ou sorriem, contando versos e prosa para a moça forte e que não chora. Concluí, certa vez, que não fui programada para amar pouco. É, não fui. Exageraram na dose do verbo. Fui conjugada no infinitivo mais que perfeito do futuro do indicativo. E, por isso, toda a minha constante sensibilidade. Coisinha tola! Essa ternura que se confunde com a cor rosada da minha pele. Um metro e sessenta de altura e, em tudo, doçura. Isso vale o quê hoje em dia?

Antes eu fosse uma daquelas mulheres exuberantes e de seios fartos, que pronunciam, aos quatro ventos, palavras rudes sem qualquer melindre e baforam fumaça de cigarros. Daquelas que contam das paixões antigas, riem alto, e dizem não amar nem sob tortura. Vai ver é para isso que serve o amor. Para ser desconstruído. Sempre suspeitei. As mulheres ousadas conseguem desconstruir o amor. Eu não. Eu fico triste e digo que, se é tristeza, logo passa. Coisa de menina programada.

Preciso de uma pausa. Breve como são algumas das pausas da vida. Mas que me baste para ver que além daqui, do que eu vejo, existe o que me completa. Não sirvo para rotina. Quero mãos abertas e palavras futuras. Coisas passadas não me sustentam.

Casulo


George Fossey

Funciona assim:
você chega mais perto
e me abraça forte.
Conta até três.

O resto do mundo, surdo,
deixa lá fora.
Fecha a porta.

[e se fecham os teus olhos nos meus desejos]

Aqui só entram a cor
e o orvalho da manhã,
em doces enlaces de
sonhos.

Céu de baunilha

Raymond Gehman


Aprendi, em pouco mais de trinta anos, coisas que nenhum filósofo escreveu, que astrólogos não imaginaram, que cientistas sequer arriscaram, que artistas não desenharam, e magos não descobriram. Inventei palavras, sentidos, emoções. Construí castelos de areia e de sonhos. Quebrei barreiras. Li e sorvi a vida em livros, em alamedas, e nos copos de absinto do bar da esquina. Caí em armadilhas. Em camas-de-gato. E de sedução. Aprendi que viver, sem medo, sem pudor, é a melhor das dádivas da vida. Aprendi que errar é necessário. E que acertar faz bem para o ego e para a alma. Desvendei mistérios de religiões e de seitas. Perdi medos. Aceitei diferenças e contragostos. Chorei de dor e de felicidade. Percorri a sanidade e a loucura em limites tênues. E decidi viver com as duas em equilíbrio. Percebi que amigos são raros e que irmãos, às vezes, são distantes. Fiz viagens das mais diversas. De Baudelaire às viagens astrais. Joguei fora o comodismo e os padrões antigos. Aprendi a abrir os olhos para o calor do sol mesmo no frio do inverno e para as cores bonitas da noite, em tons de gris, azul e negro. Contei estrelas e inventei constelações. Roubei flores, amores, e espaços. Entendi que julgar é apenas um exercício de vaidade e que ouvir e estender a mão é uma habilidade sublime. Percebi, em tempo, que abrir os olhos para o novo é mágico. E se reproduz em vida. Aprendi a viver dias trespassados por nuvens brancas e céu de baunilha. Na escrita da vida, que é a minha, aprendi a viver com os olhos atentos ao que me faz feliz. O resto vai além do limite do céu. E isso agora não me interessa.

Prólogo de outono

Edoardo Pasero


Qual o problema? Nunca gostei de regras, a não ser das que podem ser quebradas. E, bem lembrado, todas podem. Por isso, não me segure. E se eu bater o carro, sozinha, numa curva, a mais de cem por hora, perto da praia e a dois minutos de casa, nem pense em dizer que a culpa foi do tempo, da virada dos ventos, da rotina ou de qualquer coisa parecida. Você já me conhece e sabe que eu não gosto de desculpas e de todas essas tolices inventadas para manter padrões convenientes e comportados. Vontade é o que me tem. De coisas, pessoas, atos, poemas, cores, vozes, versos. Vontade de loucuras, que seja! À vontade. É assim que eu levo a vida. Se quiser me acompanhar, é bom pegar no tranco logo, me amar com gosto, e gozo, no sofá de veludo da sala, e me guardar em você enquanto é tempo. Antes que o outono acabe. Ou que eu me perca, de novo, por aí.

Fraude

Frederick Leighton


Eu sou puro sentimentalismo barato. De bar. Vã filosofia em gotas. Gotas de orvalho em manhãs de inverno. Essa coisa toda. Romântica e desmesurada. Em três linhas breves. Uma fraude.




Sutilmente

Vanessa Ho

"E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate, não
Dentro de ti, dentro de ti
Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti."

[Nando Reis e Samuel Rosa]





Em tempo: precisei roubar palavras de outro lugar. hoje elas me faltam para as coisas bonitas da alma.

Jardim de Samos


Vou para Samos. Ainda hoje arrumo a bagagem. Parto na madrugada. Cansei de trabalhar à toa. E cansei, também, das suas histórias. Vou me mandar. Você, se quiser, se arrume por aí. Case com a estagiária. Plante árvores. Tenha filhos. E fique com o quarto, os quadros, as coisas todas do baú de vime do qual você tanto gosta. Quero apenas o tecido das cortinas. Aquelas sobras que guardei no verão passado, quando você tirou férias e me deixou em casa. Sozinha. Vou fazer vestidos novos. Coloridos. Curtos e em tomara-que-caia. Tenho hoje o corpo mais curvilíneo do que tinha nos meus vinte anos, quando nos conhecemos. Acho que você não percebeu o quanto eu mudei. Nem o meu corpo torneado, nem as palavras acumuladas em anos. Agora é tarde. Letras maiúsculas e garrafais, em batom vermelho, no espelho do banheiro: DIVIRTA-SE. NÃO VOLTO MAIS.


A outra

Edoardo Pasero


Ela ficava ali, assim, de canto, na espreita, disfarçada, latente. E eu, menina assustada, atrás da porta, escondida. Num dia, chegou bem perto, sem rodeios, direta: — Qual é a tua, hein, garotinha mimada? — disse ela com voz atrevida. Daquele dia em diante, troquei de roupa, de marido, de trabalho. E comecei a ser feliz. Outra em mim. Deixei. E ela ficou. Minha despedida dos restos de tudo o que sobrava. E não fazia falta.

Fairy moon


Em terra de fadas e dragões, a moça dos cabelos dourados em trança venceu as noites e as tempestades. Tudo para procurar amor. E, no encontro, desejou que, de beijos de açúcar e de toques de plumas, transformassem-se os dois em uma só alma. E assim se fez. E d´eles se fez nova vida. Em nove luas, novas, por toda a vida, uma.

D´Amélie

Bogna Kuczerawy


Não gosto de algumas coisas. Poucas, não muitas, me desagradam. Mas, dentre elas, eu não gosto é das contradições. Prefiro os lábios colados em beijos que dispensam detalhes. Sem recortes ou entremeios. Detesto os vãos ou as frestas. De nada me servem. Só mostram partes de um todo que não reflete tudo o que envolve. E não gosto também de dúvidas. De passos estreitos ou de frases perfeitas que acomodam situações. Sou gata de rua. Escaldada. E não me faço inteira se não me sentir segura. Posso sumir por um dia. Ou a vida inteira. Nada me prende se não for puro sentido, poesia, movimento. Fico com Maiakovski em todas as linhas. Ontem passou. Hoje sou toda coração. Me chamam, por vezes, de medo, fuga, disfarce. Que definam. Limitem, se assim quiserem. A menina boba que chora. Le fabuleux destin.






Nonsense

Vicky Brago-Mitchell

E, quando me encontrar de novo, me abrace como em Shalott. Com poemas de Shakespeare. Ou, entre as minhas pernas, Bukowski. Preciso ir para longe. Júpiter ou Marte. Em camisas de Vênus. Nas ruas de Xangai. Ou uma ilha em blue, com som de blues, no Havaí. Em meia hora. Agora. Peça um chá. Em francês. Não se despeça ainda. Tire a minha roupa. Olhe a minha alma. Não demore. Ou, demorando, faça com jeito. Me [re]conheça. E se, ao acaso, por outros acasos, eu tentar fugir, não me solte. Você sabe, não foi fácil voltar aqui.

Conjugações

Gustav Klimt

Era ali, entre um abraço e outro, que eu queria ficar. Sem descompassos, entrelinhas, dissabores. Onde a frase se completa com palavras curtas, breves, e de cor leve. Em acordes, sonata ao luar e coisas afins. Por que esse é o momento de amar. Nem antes, nem depois. É ali, quando o fato, por si, basta. E diz o que é. Sem voltas, portas - ou palavras - entreabertas. Sem frestas. No espaço de não precisar argumentar nada [no nada de tudo,


e no tempo perfeito que é o amar].

Grávida

Jennifer Shaw


Estou grávida. Com vontade de parir. Ou, quem sabe, de partir. Por um instante. Ou para sempre. Posso estar grávida de mim, das coisas minhas, da minha vida toda. Grávida. E só. De solistência, solitude, ou solidão. Eu. Grávida dessas idéias que concebemos, sem saber muito bem quando, ou como, e que, tal hora, precisamos mostrar ao mundo. De algum jeito. Às claras. Ou em pausas. Mas, sim, grávida. De tudo o que eu ainda guardo em mim. A sete chaves, aos nove meses, e em três ou quatro vidas. Grávida. De gravidez ou de força de gravidade. Gravitacional. Tanto faz. Importa é que eu suporte a dor pelo gosto da criação. Basta é que se complete o ciclo. Em luas, ritos, ou poesia. Outra vez nasce, em mim, a vida.

Coisas perdidas em tempos não distantes

Raymond Gehman


Você deveria escrever mais cartas para mim, Juno. As suas ausências prolongadas me fazem sentir no meio do mar. Uma náufraga de amar, por assim dizer. Mas eu bem sei que você tem as suas ocupações, o seu dia cheio de trabalhos e a sua corrida vida de compromissos. Mas você lembra quando você me pegava pela mão, do alto - baixinho - dos meus cinco anos de idade? Eu virava gigante em pensamento. E te abraçava com todo o amor do mundo. E o mundo era ter alguém como você ali do meu lado. Tudo bem, eu sei que fui a menina mimada da casa, cheia de cuidados, protegida de todos os lados. Mas hoje você faz a mesma coisa, não faz? Eu sei que faz. E sei porque reconheço o brilho nos teus olhos quando a pequena vem ao teu encontro e te pede afago. Confessa: não é a melhor sensação do mundo? Enfim, Juno, o tempo passou. E hoje somos grandes. E aconteceu o que nunca se quer. Eu e você deixamos os abraços ficarem cheios de formalidades e de coisas sem graça. Trocamos as mãos dadas pela troca de presentes em ocasiões formais. Esquecemos - ou fazemos de conta que esquecemos - os laços, as risadas soltas, a cumplicidade das travessuras, o gosto leve das coisas da infância. De onde vem a culpa, se é que ela existe? Confesso que não sei. Talvez tenha sido por essas coisas da vida, que, vez ou outra, não entendemos e que nos fazem ficar aborrecidos. Mas, em tempo - e para falar das coisas que estão em nós sempre é tempo - saiba que você ainda é o herói de todas as minhas estórias animadas, ainda é o meu sentimento mais puro de afeto. Ainda é, apesar de todas as outras coisas, um pouco de mim.


Ana

[e Ana é irmã de Juno]

De tudo o que eu ainda não disse

Karen Frasco

Que todas as palavras bonitas cheguem em ti. E que todos os teus dias tenham as cores do céu em azul, nas molduras do pôr-de-sol do nosso primeiro outono. Que os meus beijos sejam teus nos nossos dias, noites, e outra vez em dias. Que o meu corpo e o teu sejam, em momentos nossos, um. E que todas as preces de todas os credos e cores permaneçam no teu coração. Por toda a vida. E além dela. Que, se houver lágrima, seja como o orvalho em manhãs bonitas e doces. E que de sorrisos se ilumine, sempre, o teu rosto. Que os desencontros sejam apenas de olhares distraídos. E que, de encontros, se faça de agora em diante o nosso tempo. Porque é por ti que, hoje, se fazem as coisas mais bonitas da minha vida.



.para Daniel,

amor de todas as minhas vidas.

Cio

Frank Tusch

Lua cheia
e eu
gata
no cio
enciumada
fazendo farra
em
cima
do telhado
alto com você

Do simples amar

Steven N. Meyers



Falar de amor é fácil. Os poetas falam, cantam, e encantam o amor. Fazer o amor é o que complica. Amar é coisa séria. Com amor se ama. Sem medo, sem tempo, sem pressa. Na rede, na cama, na relva. Amor é mordida na nuca, é pele, encontro das almas. É rima com verso solto. É tudo. É o enlace das mãos e a troca das frases perdidas e perfeitamente lindas entre um beijo e outro. Amor é o desejo que não tem fim. Os momentos em cor de manhã e as doses doces de intermináveis carinhos. Amar é abraçar a alma, mergulhar um no outro, suspirar baixinho "eu te amo". De cinco em cinco minutos. Ou em vidas. Amar é simplesmente gostar de estar junto. É deixar-se prender e, ao mesmo tempo, ser livre para sentir o amor. Amar requer entrega, troca, movimento. É verbo que se cuida com a ingenuidade do sorriso de uma criança. Não se ama em doses homeopáticas. Há que se viver o amor todo, no todo, e em tudo. Das sensações mais simples ao furor dos encontros. Isso é amor. Em segredo, secreto, ou explícito. Cada um do seu tipo. Mas sempre amor.





"Que importa o sentido se tudo vibra?"
[Alice Ruiz]

:)

O amor é azulzinho

Norbert Rosing


Naquele dia, na fração de segundo em que o meu braço tocou o teu, alguém pintou o céu de menos azul. Menos azul porque, até então, a cor do céu e dos teus olhos era igual. O céu, para mim, sempre aparece nos teus olhos, sabia? E eu sempre quero olhar o céu em ti. Mas como os fatos da vida me obrigam a olhar um tanto mais para o céu de verdade, aquele das nuvens, eu assim faço. Acontece que, ali, quando o meu braço tocou o teu, eu vi que a tua alma é ainda mais bonita do que os teus olhos. E que do teu sorriso se faz poesia de estrelas. E que o calor da tua pele faz sentir como se o sol me tocasse o rosto com um beijo. E que, sim, o azul dos teus olhos é mais bonito do que o azul do céu e do mar juntos.






as vogais se entendem.

Abril - outra vez

Laurent Pinsard


"...nos pasan tantas cosas en la vida
que si aparece el sol
hay que dejarlo pasar
abril otra vez
para que no tengamos soledad
... para que no tengamos nunca más soledad ."

[Fito Paez]

Vai ver é assim...

Howard David Johnson

Quem dera eu fosse mais forte, mais estanque, mais rude. Afinal, de que adianta a voz doce, o sorriso aberto, o cabelo solto, e o coração escorrendo? Quem sabe, no final, com esse meu jeito de menina boba, eu receba, de tudo, uns afagos, feito gato, e depois, esquecida a parte apressada do carinho, eu ganhe um canto na casa, na cama, ou no colo inquieto de quem me escolheu. Ter poesia na alma, hoje em dia, resulta em quê? Em versos escritos na folha de papel machê que você sequer vai saber o porquê de estarem ali? De que adianta ser boa, ser leve, ser só amor da cabeça aos pés se a alma é coisa que ninguém vê? Um dia me disseram que na vitrine dos corações de hoje se estampa outra coisa, que não isso que eu sou. Ingenuidade. Agora eu acho que entendi. As coisas da alma não estão à mostra. E raras são as coisas que se guardam assim, com tanto cuidado, como eu faço. O que se expõe hoje é outra coisa. O que fica ali, à venda, é moda. E moda passa. Como paixão. Não é amor. Pelo menos não o amor que eu busco. Não é. Mas vai ver é assim. De quase-amor em quase-querer, no tempo certo, o que é de verdade vem para mim. E me vê, inteira, como eu sou.




"Meu coração se perdeu no labirinto do querer
Ele não quer querer assim
Mas meu coração tem vontade própria e não
Me deixa andar eu deixo ir."
[ Stopa]

Agora, ouça bem!

Edoardo Pasero


Agora, ouça bem: eu escrevo - e falo - para a tua alma. São teus olhos os meus em dias de espera. São teus passos tudo o que sigo nestes meses de desassossego. Não é outro, não é nada. Não há nada. Só existe você. Em dias, noites, madrugadas. E mil outras noites. Sozinha. Sou poeta, é fato, mas tenho carne, osso, entranha, sexo. E sexto sentido. Não estranhe as minhas palavras, porque hoje elas querem estar, e entrar, em você. Eu avisei que nada me prende aqui, não avisei? Pois trate logo de me dar um trato ou, caso contrário, eu me mando sem você sentir. Hoje eu te espero. Amanhã, talvez. Mais adiante, o que há com você? Teu beijo é doce. E me encanta a poesia do teu olhar. Tua poesia em mim. E me basta. Por isso, não me perca por aí. Não se assuste. Não se ausente. Não me solte. Apenas me prenda, sempre, como se eu pudesse, num instante, fugir. Eu preciso, e só sei, amar assim.






[o que, em silêncio, por mim foi dito, para ti, nas primeiras horas da noite de ontem]

Muda o amor, muda o lugar

Louis Cantillo


Decidi. Vou mudar de casa, de telefone, de rotina. Ofereceram-me uma casa no campo. Daquelas grandes. Trezentos quilômetros daqui. Branca, janelas azuis, com alguns tijolos descascados. Flores e borboletas por todos os cantos. E um nascer do sol despontando no lago de águas cristalinas que é uma formosura. É, vou me mandar. Levo alguns livros, duas ou três garrafas de vinho - eu sei que lá encontro outras daquela safra boa de Tannat uruguaio -, meu gato Bóris, e alguns maços de cigarro, porque ninguém é de ferro [considerando o fato de passar trinta dias no meio do verde verdejante do sítio depois de ter terminado um namoro de dez anos]. Enfim, vou sair por aí, me perder, como dizem alguns, para poder me encontrar. Carro? Na garagem. Vou de ônibus. Cansei de dirigir e de cantar todo o repertório do Bowie alto e em bom som nos trajetos metropolitanos. Chegando naquela estação da cidadezinha pequena com casas coloridas que, agora, eu esqueci o nome, vou subir na jardineira amarela e adeus, bye bye, chego no sítio e só volto no começo de maio para a cidade de concreto. Do trabalho, tiro férias. Elas estão acumuladas há anos. Vou deixar para quem? Dane-se a responsabilidade laborativa por algumas semanas. Da academia, peço folga. Prefiro dez árvores seculares a dois corpos marombados. Não posso esquecer os incensos de baunilha e de pitanga, meus preferidos. Saias, vestidos e faixas de cabelo. Tudo em cores. Muitas. O patuá que eu ganhei de presente no último aniversário também vai. Quem me deu disse que traz sorte. E eu ando precisando dela. Aliás, não levo muita coisa além disso. O que eu preciso daqui em diante é silêncio, silêncio, si - lên - cio. E isso não inclui mais você.

Do meu jeito

Lara Jade Coton


Eu gosto, mesmo, é do exagero. E gosto da pressa porque a minha vida é urgente. Se preferir monotonia, você pode ligar a televisão. E apagar meu número de telefone. Para sempre. Pode continuar no cinza de tudo. Sem cor, sem amor. Tudo bem, talvez você não tenha entendido a segunda parte, quando eu disse que não gosto do tempo, dos sentimentos presos e das coisas estreitas, perfeitas demais. Quero beijar na chuva, na boca, no meio da rua. Ou na poltrona do cinema. Quero, e preciso, de tudo o que pulsa. Do impulso. E daquilo que me tira do sério, da linha, do eixo. Eu sei do meu tamanho. E sei que não brinco quando me atiro lá do alto, para os teus braços. Não brinco.

Fetiche

Brent Bergherm


Você. Assim, de boca, corpo, mão. Tudo. Em três noites. Quatro luas. Ou de quatro. No ato. Esse meu feitiço por você é uma coisa louca. Que dá água na boca do começo ao fim do dia. Sede dos teus beijos. Nas cores da seda, nos versos de Neruda ou com Janis na vitrola. Você vem. E me leva para perto até em pensamento. Não finjo. É fato. Falo. Fetiche de amor. Do mais puro de todos. Para toda a vida.






"[...] tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho."
[Pablo Neruda]

Kiss me or leave me

Wytske Van De Kamp

Kiss me or
leave me
amor
de toda
a minha
vida.

Por falar nisso...


Eu nunca soube, exatamente, como se descobre o amor. Talvez porque, até aqui, esse meu jeito um tanto torto de desvendar as coisas tenha me atrapalhado. Ou, talvez, porque amor não foi feito para ser descoberto. Assim, com hora certa. Acho que é coisa que acontece sem dia que se marque no calendário. Não, o amor não deve ter tempo ou ser cronometrado e definido. Amor gosta é do infinito. Quem sabe o amor seja apenas uma brisa, daquelas de final de tarde de primavera. Ou flor de verão, que seja. No outono. Ou no inverno. É, enfim, amor. Apenas acontece.