Menina programada

Vanessa Ho

Pedi uma torta e um café. Sobraram algumas coisas.

Sei o dia do ano em que nasci. E o horário. Mas tenho dúvida se fui gerada ou se fui colhida de uma árvore de maçãs.

Se me olhassem de dentro diriam: "uma menina tímida, bonita, e que precisa de amor." Mas me olham de fora, e, de fora, riem, ou sorriem, contando versos e prosa para a moça forte e que não chora. Concluí, certa vez, que não fui programada para amar pouco. É, não fui. Exageraram na dose do verbo. Fui conjugada no infinitivo mais que perfeito do futuro do indicativo. E, por isso, toda a minha constante sensibilidade. Coisinha tola! Essa ternura que se confunde com a cor rosada da minha pele. Um metro e sessenta de altura e, em tudo, doçura. Isso vale o quê hoje em dia?

Antes eu fosse uma daquelas mulheres exuberantes e de seios fartos, que pronunciam, aos quatro ventos, palavras rudes sem qualquer melindre e baforam fumaça de cigarros. Daquelas que contam das paixões antigas, riem alto, e dizem não amar nem sob tortura. Vai ver é para isso que serve o amor. Para ser desconstruído. Sempre suspeitei. As mulheres ousadas conseguem desconstruir o amor. Eu não. Eu fico triste e digo que, se é tristeza, logo passa. Coisa de menina programada.

Preciso de uma pausa. Breve como são algumas das pausas da vida. Mas que me baste para ver que além daqui, do que eu vejo, existe o que me completa. Não sirvo para rotina. Quero mãos abertas e palavras futuras. Coisas passadas não me sustentam.

Casulo


George Fossey

Funciona assim:
você chega mais perto
e me abraça forte.
Conta até três.

O resto do mundo, surdo,
deixa lá fora.
Fecha a porta.

[e se fecham os teus olhos nos meus desejos]

Aqui só entram a cor
e o orvalho da manhã,
em doces enlaces de
sonhos.

Céu de baunilha

Raymond Gehman


Aprendi, em pouco mais de trinta anos, coisas que nenhum filósofo escreveu, que astrólogos não imaginaram, que cientistas sequer arriscaram, que artistas não desenharam, e magos não descobriram. Inventei palavras, sentidos, emoções. Construí castelos de areia e de sonhos. Quebrei barreiras. Li e sorvi a vida em livros, em alamedas, e nos copos de absinto do bar da esquina. Caí em armadilhas. Em camas-de-gato. E de sedução. Aprendi que viver, sem medo, sem pudor, é a melhor das dádivas da vida. Aprendi que errar é necessário. E que acertar faz bem para o ego e para a alma. Desvendei mistérios de religiões e de seitas. Perdi medos. Aceitei diferenças e contragostos. Chorei de dor e de felicidade. Percorri a sanidade e a loucura em limites tênues. E decidi viver com as duas em equilíbrio. Percebi que amigos são raros e que irmãos, às vezes, são distantes. Fiz viagens das mais diversas. De Baudelaire às viagens astrais. Joguei fora o comodismo e os padrões antigos. Aprendi a abrir os olhos para o calor do sol mesmo no frio do inverno e para as cores bonitas da noite, em tons de gris, azul e negro. Contei estrelas e inventei constelações. Roubei flores, amores, e espaços. Entendi que julgar é apenas um exercício de vaidade e que ouvir e estender a mão é uma habilidade sublime. Percebi, em tempo, que abrir os olhos para o novo é mágico. E se reproduz em vida. Aprendi a viver dias trespassados por nuvens brancas e céu de baunilha. Na escrita da vida, que é a minha, aprendi a viver com os olhos atentos ao que me faz feliz. O resto vai além do limite do céu. E isso agora não me interessa.

Prólogo de outono

Edoardo Pasero


Qual o problema? Nunca gostei de regras, a não ser das que podem ser quebradas. E, bem lembrado, todas podem. Por isso, não me segure. E se eu bater o carro, sozinha, numa curva, a mais de cem por hora, perto da praia e a dois minutos de casa, nem pense em dizer que a culpa foi do tempo, da virada dos ventos, da rotina ou de qualquer coisa parecida. Você já me conhece e sabe que eu não gosto de desculpas e de todas essas tolices inventadas para manter padrões convenientes e comportados. Vontade é o que me tem. De coisas, pessoas, atos, poemas, cores, vozes, versos. Vontade de loucuras, que seja! À vontade. É assim que eu levo a vida. Se quiser me acompanhar, é bom pegar no tranco logo, me amar com gosto, e gozo, no sofá de veludo da sala, e me guardar em você enquanto é tempo. Antes que o outono acabe. Ou que eu me perca, de novo, por aí.

Fraude

Frederick Leighton


Eu sou puro sentimentalismo barato. De bar. Vã filosofia em gotas. Gotas de orvalho em manhãs de inverno. Essa coisa toda. Romântica e desmesurada. Em três linhas breves. Uma fraude.




Sutilmente

Vanessa Ho

"E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate, não
Dentro de ti, dentro de ti
Mesmo que o mundo acabe, enfim
Dentro de tudo que cabe em ti."

[Nando Reis e Samuel Rosa]





Em tempo: precisei roubar palavras de outro lugar. hoje elas me faltam para as coisas bonitas da alma.

Jardim de Samos


Vou para Samos. Ainda hoje arrumo a bagagem. Parto na madrugada. Cansei de trabalhar à toa. E cansei, também, das suas histórias. Vou me mandar. Você, se quiser, se arrume por aí. Case com a estagiária. Plante árvores. Tenha filhos. E fique com o quarto, os quadros, as coisas todas do baú de vime do qual você tanto gosta. Quero apenas o tecido das cortinas. Aquelas sobras que guardei no verão passado, quando você tirou férias e me deixou em casa. Sozinha. Vou fazer vestidos novos. Coloridos. Curtos e em tomara-que-caia. Tenho hoje o corpo mais curvilíneo do que tinha nos meus vinte anos, quando nos conhecemos. Acho que você não percebeu o quanto eu mudei. Nem o meu corpo torneado, nem as palavras acumuladas em anos. Agora é tarde. Letras maiúsculas e garrafais, em batom vermelho, no espelho do banheiro: DIVIRTA-SE. NÃO VOLTO MAIS.