Azul


       Laurent Pinsard

Há no silêncio alguma coisa de azul. Violeta, cobalto, marinho. Dos pequenos fragmentos de um tempo são feitas as pausas da vida. Reticências, iminências, descobertas. Turquesa, anil, da Prússia, ferrete, pombinho. Não sei se é o azul do céu, do mar, ou do olhar. Talvez seja apenas a letra de um blues.  Tocado assim, devagarinho. Azular o amor num encontro de almas. E é preciso mais?

esperas


quem sabe um dia você desiste dessa maneira tola de tentar resolver as coisas em pedaços e me tem inteira.

[quem sabe um dia]




Diário


Segunda-feira
Não sei como começar um diário. Sou impaciente com regras. Portanto, aviso que a empreitada pode não durar dois dias. Acontece que cansei da poesia de ser sozinha. Preciso de um cúmplice e não tenho vocação para amante. Vou escrever em poucas linhas e tentar entender o que vem por aí. Se não der certo, depois eu dou um jeito. Escrever solto. Só para ver no que dá.

Terça-feira
Talvez hoje chova. Aquela garoa fina que me incomoda quando molha os meus cabelos. Não gosto de dias de chuva. Não gosto dos meus cabelos. E cheguei na idade em que não gosto de me olhar no espelho. Vou passar por ele como Alice. Tarde, mas me encontrei com aquilo que alguns chamam de razão, outros de juízo, e outros, os livres – ou loucos [e, portanto, livres] –, de perda de tempo. Pedi duas doses de whisky no boteco da esquina. Não dormi em casa.

Quarta-feira
Passamos a noite juntos. Desta vez, em lua crescente. Acordei feliz. Um banho a dois, café na cama e flores. Preciso, mesmo, escrever isso aqui? Pieguice e clichês românticos estão fora de moda. Aliás, até a capa deste diário está fora de moda. P.S.: Talvez eu também esteja.

Quinta-feira
Passou da meia-noite. Ele chegou tarde. Pedido de desculpas com uma caixa de bombom. Perdi o tesão por qualquer coisa ou por qualquer ato que não o do silêncio. Já é quinta e não virei a página do diário. Escrevi nas mesmas linhas de ontem. Quero trocar o disco. Hoje à noite, é Nina Simone pelo Cartola só para ver se dá samba. Depois eu me corrijo. Leio Ana Cristina César. Viciante. Preciso de um beijo que tenha um blue. Açúcar branco e café preto.

Sexta-feira
Ainda chove. Noite. Lua cheia. Eu, crescente. Sexo, carinho e sono. Pedi ao relógio para atrasar o amanhecer. Até me parece razoável ter mais de trinta anos e escrever diários.

Sábado
Comentários sobre ela me desagradam. Já disse que me desagradam. Depois de tudo dito, ele me estendeu a mão. Não consegui acompanhar. Acho que a minha respiração parou por segundos. Acompanhei o sono dele por um tempo. Meus olhos pesaram. Não sei se me encolhi de frio ou de medo. Levantei algumas vezes e circulei pela sala. Olhei as revistas e tentei ler Proust sem sucesso. Ainda bem que existe o mundo virtual. Descobri o Twitter e uns mapas legais no site de Geologia da faculdade. Deitei por volta das seis da manhã. Ele dorme sempre na mesma posição. Acho bonitinho e estranho. Eu sou um Tsunami com os lençóis. Tarde de sábado e eu estava com o sono atrasado. Experimentei mudar a cor do esmalte. Disseram que vermelho-cereja traz sorte e fortuna. Cheguei em casa e encontrei um bilhete em cima da mesa. Ele nem ao menos assinou. Típico comportamento masculino. Acho que a minha intuição já me alertava: prazo de validade para relacionamentos encantadores demais, promessas demais, coisas demais: algumas semanas. Se, porém, tratado com vinho tinto e boa cama, o prazo alonga por alguns dias. Estou solteira outra vez. Mas com as unhas feitas e pintadas de vermelho-cereja. Ainda bem que é primavera. Preciso de um homem que me leia inteira.

Domingo
Desisti de diários. E talvez eu deva mesmo, como falou a minha mãe, morar em Londres. Quero pintar as paredes de casa de verde. Que seja, verde. Dane-se quem não gostar. A parede é minha e a cor da minha vida eu escolho. Comprei um cachorro e ganhei um cupom de desconto no trânsito. A loja até que é bacana. Vou comprar vestidos novos. Troquei a ordem dos discos e rasguei todas as cartas antigas que recebi dele no inverno passado. Voltei a sorrir mesmo com problemas para resolver. Sem diários e pesquisando pacotes de viagem. Vou deixar os bons ventos me levarem. E seja lá o que Londres quiser.

Analógica

Liliana Sanches

Ana, se precisar de verdades, fala. Todas. Sem metades ou invenções metafísicas. Podem ser frases em linhas tortas. Mas exercita a língua, Ana, em palavras certas, no momento em que entender correto. Pouco importa o antes. Lembra que do agora surge o teu reclame, o teu presente, a tua vontade. Se quiser chorar, Ana, fica só com a parte do que precisa ser dito. Ouvido. Sentido. Prova, sem culpa, o dom da narrativa breve e larga de significado. Usa a razão com bom senso. Faz da intuição teu guia. E segue sozinha os teus caminhos. Eu preciso partir.