genealogia

Darlyne A. Murawski

Minha mãe não morreu. E ainda assim eu não digo a ela o tanto de amor que há aqui. Aliás, digo. Mas digo pouco. Ela merece mais. As mães nunca erram. E a minha é um punhado de acertos. Um punhado bem grande. Reconhece a minha voz e as minhas dúvidas. Mães acalentam, exageram, protegem. São aqueles anjos que podem ser vistos de perto e que têm abraços em lugar de asas. Anjos terrenos. Um sem-fim de ternura.

Meu pai tem quase oitenta anos. Eu tenho pouco mais de trinta. E faço de conta que sei mais do que ele em tudo. Mentira! Meu pai tem de sobra o que eu ainda sequer cheguei perto: experiência.

Os filhos fingem que acertam. Os filhos erram. E insistem em acreditar que os pais são eternos. Não são. Eles partem no dia em que você menos imagina. E deixam as roupas, os livros, e as lembranças de quando, em criança, um domingo era uma festa, um sorriso era um presente, ganhar um doce era a felicidade. Sem precisar de mais nada. Bastava o carinho do colo, a segurança do sono velado. Bastava.

Um dia, quiçá, vamos aprender a dar aos pais o que eles nos ofertaram sem condição. Um dia talvez percamos a vergonha, a cara fechada quando recebemos um conselho, e a timidez para falar eu te amo. Tomara que um dia os filhos sejam pais em tempo de ainda agraciarem com coisas doces os sentidos de quem lhes deu a vida. Tomara.

em linha

Alain Thomas


desculpa preciso falar algumas coisas que são apenas detalhes momentos passatempos ou brincadeiras sérias de adultos que viram criança quando amam um ao outro sem farsas disfarce mas acontece que você vê e finge que me olha de um jeito que eu não sei de onde vem tanta coisa misturada assim sem saber nada e que me invade com tudo no mundo que é nosso e que às vezes se desfaz em pequenos pedaços de outras coisas de várias pessoas todas esquecidas que deveriam estar no seu lugar de espaço tempo outro modo de enxergar aquilo que precisa ser visto é o que não vemos e esquecemos de acompanhar as coisas bonitas tão lindas e raras de nós dois.

Morangos selvagens

David Cintract

Comi o primeiro morango com quarenta e cinco anos de idade. Sou alérgico a morangos. E, por ser alérgico, deixei de provar essa e outras pequenas delícias que existem no mundo. Depois das explicações médicas, busquei resposta na religião. Segundo o Espiritismo, minha alergia existe para que eu aceite algo que, em outras vidas, rejeitei. Para o Cristianismo, ser alérgico não é pecado e eu vou para o céu se evitar os morangos. No Judaísmo, eu não poderia misturar morango com algum outro alimento da comida kasher. E, para os neo-pagãos, comer morangos só com a permissão da natureza. Não acredito em espíritos, conheço os dez mandamentos, já li todos os preceitos judaicos e acredito em bruxas só na forma de mariposas. Sou ateu e professor de Filosofia. Não matei Deus, como fez Nietzsche, mas também não vivo em luta diária com o lado profano da vida. Mesmo alérgico, provo morangos se os motivos forem convincentes.

Certa vez, Lúcia, uma namorada, me presenteou com uma caixa de bombons recheados de morango. No cartão, o escrito: “Você tem gosto de morango selvagem.” Não contei a ela que nunca havia provado morangos, muito menos que não fazia sequer ideia do sabor de um morango selvagem. Ela certamente conhecia o gosto. Menti que adorava morangos. Mulheres não suportam ser contrariadas, a não ser para iniciar e prolongar uma discussão. Deveriam vir ao mundo com manual Proustiano. Naquela tarde eu acabara de ler um livro do Michel Onfrey, e dei a Lúcia uma aula sobre morangos e sobre a culinária de Carême. Em troca, recebi uma noite de amor que eu defino como etílica e de vanguarda.

Lembro que era segunda-feira. Desci as escadas e, olhando contra a claridade empoeirada da vidraça da porta de entrada do prédio, visualizei a banca de morangos do outro lado da rua. “Três por dez”, dizia no papelão rabiscado com lápis preto. Perguntei ao vendedor sobre morangos selvagens. Ele disse que deveriam ser silvestres, porque morango selvagem ele nunca tinha visto. “Selvagens!”, insisti. “Silvestres”, ele retrucou. Desisti do vendedor. Fui à caça dos meus morangos no mercado público. Estava decidido a provar do meu próprio gosto. Cruzava as ruas e praças da cidade tentando imaginar o sabor daquilo que se intitulava morango selvagem e que agradava tanto ao paladar de Lúcia. E uma pena que não agradasse também ao gosto daquela ruiva estonteante da faculdade. No caso dela, eu deveria ser tão atraente como uma laranja em meio a mirtilos e uvas selecionadas. C´est la vie.

Mas agora era diferente. Eu tinha gosto de morango selvagem!

Sorte que era final de mês. E que no mercado público havia condições de passear tranquilamente, sem aqueles atropelos de carrinhos e de velhinhas aborrecidas fazendo compras aos sábados pela manhã. Caminhei por ali cerca de meia hora. Lá estava: “Três por cinco.” Eis os morangos selvagens! Vermelhos, suculentos, adoráveis. Pedi uma caixa. E lucrei em relação ao que pagaria pelas frutas pálidas da banca em frente ao meu prédio. Recebi o embrulho e tomei o rumo de volta. Satisfeito com a descoberta dos morangos, faltava agora a prova. Não conseguiria esperar o retorno para casa. Sentei no banco da sorveteria e coloquei a sacola no colo. Espiei. Cerca de uns quinze frutos rechonchudos cor de rubi aguardavam a satisfação da minha gula. Desembrulhei a caixa e senti aroma de Floresta Negra, com cerejeiras por todos os lados. Cores, formas, sabores. Cheiro de terra molhada depois da chuva. E calor ameno de sol de amanhecer. Não sei o motivo de morangos me lembrarem cerejas. Mas acontece até hoje.

Pensei por alguns instantes na alergia, na possibilidade de algum choque anafilático, convulsão, morte. Mas a curiosidade pelo sabor do morango selvagem foi maior e abocanhei, delicadamente, o primeiro. A carne da fruta macia me tocou os lábios, os dentes, e a língua como se fosse uma nuvem que toca o mar. Suave. Exercitei as papilas lentamente, até engolir o líquido doce que, misturado com a saliva, escorreu pela garganta com sabor de néctar ou de qualquer coisa doce e saborosa.

Devo a Lúcia uma das minhas experiências mais sublimes vivenciadas até hoje. Descobri que sou alérgico apenas a morangos cultivados com agrotóxico. Aos selvagens, que são naturais, sou imune. Assim como descobri que sou imune a inseguranças bobas e a mentiras fúteis. Comecei a fazer coisas que havia abandonado. Visitei meu pai. Fiz novos amigos. Troquei de casa. Recomecei o mestrado. Voltei a frequentar a livraria da esquina. Tirei o açúcar do café. Parei de fumar. Doei as roupas que não uso mais. Acenei para o vizinho. Tomei banho de mar à noite. E decidi começar a viver como se ninguém estivesse olhando. Até agora tem dado certo. E, sem medo de morrer, estou mais vivo do que nunca.