Madeleine


ainda há coisas de Madeleine pela casa.

às vezes
um par de luvas

às vezes
um par de sapatos

tudo em par
tes inacabadas.

       pe da ços de lembranças das quais não preciso -
       alívio.

faço de conta que não vejo. 

    controlar os impulsos pode valer a pena.
           
passam alguns meses
e eu decido não me importar:
de onde me teria vindo
aquela poderosa alegria?

        percebo:
        Madeleine não mora mais aqui.
     
        vivo em paz.

Punta del Diablo e Mario Benedetti


Mario Benedetti
  
Confesso que estava em dúvida sobre o tema que iria escolher para a Cult desta semana, mas um jantar na sexta-feira à noite aguçou minhas ideias e me deu uma boa sugestão. Enquanto saboreava algumas delícias da culinária uruguaia na pizzaria Punta del Diablo (na Protásio Alves, 1472), lembrei as férias de verão que passei na praia que deu nome ao restaurante de Porto Alegre. Punta del Diablo, povoado de pescadores situado a aproximadamente  300km de Montevideu, é um paraíso para quem quer fugir do agito dos roteiros turísticos badalados e para quem gosta de curtir alguns dias de clima despojado nas belas paisagens do país vizinho.

Passei alguns dias em Punta del Diablo, hospedada em um albergue onde precisei usar o que eu chamo “mistês”, uma mistura de inglês, espanhol, italiano e português. Mochileiro precisa se comunicar. E quem não concluiu todo o curso de inglês e sente dificuldade de ajustar a pronúncia em outra língua, precisa usar a criatividade - e muita mímica, para começar um diálogo em outro país, mas, voilá (olha o francês aí!), o importante, como escreveu Fernando Pessoa, é navegar. Importante é perder o medo de encarar uma viagem só porque você não fala o idioma que forçosamente tentam instituir como universal, importante é arriscar, é descobrir novos caminhos, é ir ver o que acontece além das mesas de trabalho e da rotina do dia-a-dia, importante é não se acomodar, é sair, descobrir, aventurar.

E, serve de dica aos navegadores de primeira viagem, conhecer as belezas do Uruguai pode ser um bom começo para quem quer começar a se aventurar de mochila nas costas, sem grandes exigências de sofisticação e com muita disposição para conhecer lugares novos. Se sobrarem tempo na agenda e vontade de percorrer alguns kilômetros de carro, vale a pena passar pelo Chuí rapidinho e chegar em Punta del Diablo para conhecer as praias protegidas por vegetação e rochas e coloridas pelos barcos dos pescadores, encher os olhos com a arquitetura moderna que contrasta com as casas simples dos nativos, para curtir o pôr-do-sol bonito dos finais de tarde, saborear as deliciosas panquecas recheadas com doce de leite ou para descobrir, como aconteceu comigo quando estive lá, pequenas feiras de livros usados espalhadas pelas ruas estreitas da vila, com preço mais do que acessível ao bolso de quem está viajando e não tem dinheiro de sobra para gastar.

Eu lembro que, numa dessas feiras, montada no pátio de uma casa no centrinho, botei os olhos em Yesterday y mañana, do Mario Benedetti e não larguei o livro durante toda viagem. Punta del Diablo ficou mais bonita do que quando eu tinha chegado. Agora era uma praia, além de mágica, [en]cantada nos versos de Benedetti:

SÍMBOLOS Y SEÑAS
La vida está entreabierta
de modo que penetran
los símbolos y señas

hay que aventar lo inútil
y es tan poco

A cada dia de passeios pela vila e arredores, eu lia e relia uns quatro ou cinco poemas do autor uruguaio. Até então, eu conhecia pouco sobre a obra de Benedetti, alguns versos e só, mas, pelo tanto que gostava, tinha uma prévia de que seria amor ao primeiro livro. Do que eu já  conhecia dele, me agradava muito Botella al mar, poema que sempre me faz desenhar no pensamento uma praia de águas tranquilas em um dia iluminado de sol:

Pongo estos seis versos en mi botella al mar
con el secreto designio de que algún día
llegue a una playa casi desierta
y un niño la encuentre y la destape
y en lugar de versos extraiga piedritas
y socorros y alertas y caracoles.

Os belos cenários do Uruguai e os poemas de Yesterday y mañana me fizeram despertar a curiosidade pela vida e pela obra de Benedetti, o que me levou a descobrir que o autor escreveu mais de oitenta títulos e é considerado um dos principais autores uruguaios, premiado em diversas categorias e reconhecido mundialmente por sua novela A Trégua, publicada em mais de 140 edições desde 1960.

A intensidade dos versos de Benedetti harmonizam com as sutilezas da vida descritas pelo poeta, o que torna a leitura dos versos agradável e repleta de sensações:

DIGAMOS
1.
Ayer fue yesterday
para buenos colonos
mas por fortuna nuestro
mañana no es tomorrow

2.
Tengo un mañana que es mio
y un mañana que es de todos
el mío acaba mañana
pero sobrevive el otro


Punta del Diablo


Na década de 70, Mario Benedetti viveu o exílio e mudou-se para a Argentina, Cuba, Peru e Espanha, sempre na companhia da esposa Luz, falecida em 2006 em decorrência de Alzheimer. Após a morte de Luz, Benedetti doou parte de sua biblioteca pessoal ao Centro de Estudos Iberoamericanos Mario Benedetti da Universidade de Alicante, na Espanha. O poeta morreu em 2009 aos 88 anos. Dizia ele que a literatura é um sótão das almas e que serve para perder o medo da morte. Benedetti, sem dúvidas, não demonstrava seus medos. E, se os tinha, eram certamente aliviados pela escrita.

As lembranças de Punta del Diablo terão sempre, para mim, um significado especial, um gosto pela descoberta da liberdade e um agradecimento único à poesia de Benedetti, que naqueles dias me presenteou a vida em versos. Por isso, o poema que encerra a coluna de hoje, Cada ciudad puede ser otra, é um dos meus preferidos. As cidades que conhecemos, assim como as jornadas que trilhamos na nossa vida, são da maneira que as criamos. Podemos visitar a mesma cidade várias vezes e, em cada uma delas, podemos encontrar algo novo, bonito, estranho. Podemos ficar em silêncio, visitar a nossa alma todos os dias e, em cada encontro, é possível que percebamos o que é preciso mudar ou o que é preciso deixar do jeito que está. Basta querer conhecer para descobrir. As cidades, e o mundo todo, estão aí para isso.

CADA CIUDAD PUEDE SER OTRA
Cada ciudad puede ser otra
cuando el amor la transfigura
cada cuidad puede ser tantas
como amorosos la recorren

el amor pasa por los parques
casi sin verlos pero amándolos
entre la fiesta de los pájaros
y la homilía de los pinos

cada ciudad puede ser otra
cuendo el amor pinta los muros
y de los rostros que atardecen
uno es el rostro del amor

el amor viene y va y regresa
y la ciudad es el testigo
de sus abrazos y crepúsculos
de sus baonanzas y aguaceros

y si el amor se va y no vuelve
la ciudad carga con su otoño
ya que le queda sólo el duelo
y las estatuetas del amor


*Publicado na coluna Cult, na intranet  da Procuradoria Regional da República da 4ª Região em 13-07-2011.