Felina da estepe?

Ler Demian*, do Hermann Hesse, me faz, inevitavelmente (e um tanto assustadoramente), pensar que eu possa ser uma versão feminina do Harry Heller, personagem principal do “Lobo da Estepe”, primeiras linhas que li de Hesse, e que bastaram para eu me apaixonar pelas obras do autor. Harry vive constantemente dividido entre a parte homem e a parte lobo. Aos que não conhecem esta maravilhosa obra literária, segue, antecipadamente me desculpando por ser um tanto extenso, um dos fantásticos trechos ali encontrados:

Com nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como lobo, ora como homem, como acontece aliás com todos os seres mistos. Ocorre, entretanto, que quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador, sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia de maneira semelhante. Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse uma das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convinha, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba. Toda ação humana parecia, pois, aos olhos do lobo horrivelmente absurda e despropositada, estúpida e vã. Mas sucedia exatamente o mesmo quando Harry sentia e se comportava como lobo, quando arreganhava os dentes aos outros, quando sentia ódio e inimizade a todos os seres humanos e a seus mentirosos e degenerados hábitos e costumes. Precisamente aí era que a parte humana existente nele se punha a espreitar o lobo, chamava-o de besta e de fera e o lançava a perder, amargurando-lhe toda a satisfação de sua saudável e simples natureza lupina.

A velha história das metades, como tão bem musicou Oswaldo Montenegro: “metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio; metade de mim é o que penso, mas a outra metade é um vulcão; metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço”. Por vezes me sinto assim, dividida, e fico em dúvida se o que sobressai aos olhos dos outros é a minha metade sempre sensata, a que sorri sempre, a que só profere palavras amáveis, a que obedece, respeita, enfim, a que pensa mais do que sente e se preocupa interminavelmente com os desejos dos outros, ou aquela não tão racional, a metade loba (felina seria a melhor definição), aquela que mostra os dentes, que esbraveja, que se irrita, que se descontenta, que revida, que defende seu espaço, que briga, que ama com exagerado instinto e que, por isso, sofre na mesma intensidade. Metades. São metades de mim, que, vez por outra, duelam, mas que, felizmente, na maior parte do tempo, convivem pacificamente, lado a lado. Ora instinto, ora razão. E, se a alguns assusta, a mim encanta saber que, entre esses dois extremos, existem ainda outras diversas almas, cores, matizes. Outras partes do meu todo. As mil flores da minha alma. E delas eu cuido cada qual com sua graça, com seu sentido. Difícil crer que alguém seja um só o tempo inteiro. Gosto de pessoas que têm metades. E daquelas que de cada uma dessas metades sabe fazer um todo lindo, verdadeiro, pulsante. Não tenho a obrigação de ser constante o tempo todo, vinte e quatro horas por dia, nos sete dias da semana. Se oscilo é porque me mostro, porque me defendo, porque me solto, porque me escondo, porque me protejo, porque me apego, porque me liberto. E se o meu jeito assusta, lamento. Não sou, nem quero ser, estanque.

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*Demian é um livro escrito por Hermann Hesse, ganhador do Nobel de Literatura de 1946. Considerada por muitos críticos a principal obra de Hesse, Demian mostra a influência que este sofreu dos escritos de Nietzsche e a aplicação de seus conhecimentos de psicanálise na elaboração do drama ético e da enorme confusão mental de um jovem que toma consciência da fragilidade da moral, da família e do Estado.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Demian

2 comentários:

  1. Gostei do teu blog, já tive a oportunidade de ler um pouco da obra de Herman Hesse, inclusive Demian. Quanto aos triângulos amorosos, já os sofri, isso não é privilégio feminino. Pena que não tem uma foto sua, pois pareces ser realmente uma felina daquelas que merecem ser admiradas.

    Paulo Nascimento

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  2. obrigada! bom saber que gostastes do blog.

    é... pelo visto os triângulos amorosos perturbam a vida e os coraçõezinhos de ambos os sexos. ouvi muitos comentários sobre o texto nos últimos dias. e notei que a situação desagrada aos dois, cada um do seu modo.

    quanto à foto... deixemos a imagem aos que não cultuam a poética linguagem da alma. ;)

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